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Reflexões sobre um Futuro para a Ilusão neste Mal-estar na Civilização

Vivemos tempos difíceis, muito difíceis. Quase tudo que parecia ter solidez agora se desmancha no ar, revelando fissuras e rupturas profundas, sem que ainda saibamos se são circunstanciais ou reestruturantes. A inquietude, a incerteza e a insegurança nos visitam com frequência nestes tempos que são os nossos...Qual o futuro da humanidade?

Nestes longos dias de quarentena, decido retornar a Freud, sempre a ele. Particularmente a dois grandes textos do mestre: “O Futuro de uma Ilusão” (1927) e o “Mal-estar na Civilização” (1930), na tentativa de dispor dos instrumentos necessários para compreender um pouco melhor sobre a natureza do desconforto causado por nosso sofrimento.

A qual ilusão se refere Freud no primeiro texto?

Fundamentalmente, à significação psicanalítica das representações religiosas, crenças fortemente imbuídas dos desejos mais arcaicos e mais intensos da humanidade.

Qual o valor particular destas representações? Sobretudo o de nos auxiliar a exorcizar o horror frente a nosso desamparo diante da natureza da existência, nos reconciliando com a crueldade do destino e o de nos aliviar um pouco do sofrimento e das privações impostas pela vida em comum na cultura.

Desta forma, o segredo da força de uma ilusão é a força destes desejos face à angústia causada pelo desamparo do homem diante da realidade. A ilusão é o sintoma que nos ajuda a suportar a realidade sob a forma fantasmática.

No segundo texto, Freud já constata, desde o título, um mal-estar na civilização. Há um mal-estar na civilização.

Um aspecto importante a se destacar deste texto é que ele aparece no contexto de plena crise mundial de 1929 e sua principal argumentação é a questão sobre o que a humanidade demanda da vida. O ser humano demanda felicidade.

Mas, por que é tão difícil ser feliz? “Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar” e esse mal-estar é o desconforto proveniente da experiência de sofrimento, muito mais frequente do que àquela de felicidade. De onde provém esta experiência de sofrimento? Basicamente, de três fontes: da natureza, do corpo e do outrem, ou seja, do mundo externo, de si e do outro.

Em busca de um futuro para uma ilusão neste mal-estar na civilização, em tempos que são os nossos, reflito sobre o desamparo vivido pela perda do suporte da ilusão diante da realidade que nos impõe o sofrimento causado pela força da natureza na forma desta terrível pandemia, pelo angústia causada diante da fragilidade de nosso corpo e de nossa existência e também pela consternação diante do outro, sobretudo instituições políticas.

Não são certamente tempos fáceis e não são raras as formas de representação e expressão do sofrimento psíquico. Sofremos e não devemos nos envergonhar disso. Se necessário, devemos buscar ajuda para suportarmos o tempo necessário a que tudo isso se amenize e um mínimo de ilusão se restabeleça entre nós e o real.

Convido o leitor a apreciar um outro belo texto de Freud: “Sobre a Transitoriedade”(1916).

Boa leitura e não tenhamos medo de perder a nossa força de percussão e nem a nossa ilusão de um futuro. Muito obrigada!

“Sobre a Transitoriedade”. Texto de S. Freud (1916/1915). Retirado do vol. XIV das Obras Completas – Ed. Imago. “Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade. A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição. Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor. Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta. Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade. O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto. Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis. Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”.


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